terça-feira, 25 de março de 2008

FICHA DE TRABALHO SOBRE AS FÁBULAS

Actividade – Descobrindo significados

1. Procure no dicionário alguns significados da palavra “moral”.
a) ___________________________________________
b) ___________________________________________
c) ___________________________________________
d) ___________________________________________
e) ___________________________________________


2. Complete o quadro abaixo, apontando aqueles valores que, na sua opinião, são, em geral, aceites pela sociedade, em oposição àqueles que são condenados:






Leitura compreensiva e interpretativa do texto


O Lobo e o cordeiro


Como naquele Verão fazia muito calor, um lobo dirigiu-se a um ribeirinho. Quando se preparava para mergulhar o focinho na água, ouviu um leve rumor de erva a mexer-se. Virou a cabeça nessa direcção e viu, mais adiante, um cordeirinho que bebia tranquilamente. “Vem mesmo a propósito!” – pensou o lobo de si para si. - “ Vim aqui para beber e encontro também o que comer...”Aclarou a voz, pôs um ar severo e exclamou:
-Eh! Tu aí!
-É comigo que está a falar, senhor? - respondeu o cordeiro. – Que deseja?
- O que é que desejo? Mas é evidente, meu malcriado! Não vês que ao beber me turvas a água? Nunca ninguém te ensinou a respeitar os mais velhos?
- Mas... senhor? Como pode dizer isso? Olhe como bebo com a ponta da língua... Além disso, com sua licença, eu estou mais abaixo e o senhor mais acima. A água passa primeiro por si e só depois por mim. Não é possível que esteja a incomodá-lo! – respondeu o cordeirinho com voz trémula.
- Histórias! Com a tua idade já me queres ensinar para que lado corre a água?
- Não, não é isso... só queria que reparasse...
- Qual reparar nem meio reparar! Olha que não me enganas! Pensas que te escapas, como no ano passado, quando andavas por aí a dizer mal da minha família? “Os lobos são assim... os lobos são assado...” Tiveste muita sorte por eu nunca te ter encontrado, senão já te tinha mostrado como são os lobos!
- Não sei quem lhe terá contado tal coisa, senhor, mas olhe que é falso, acredite. A prova é que no ano passado eu ainda não tinha nascido.
- Pois se não foste tu, foi o teu pai! - rosnou o lobo, saltando em cima do pobre inocente.
Moral
Para alguém decidido a fazer o mal a todo o custo, qualquer razão serve, ainda que seja uma mentira.


Esopo




Actividade – Trabalhando a estrutura do texto


a) Enumere, pelos menos, três adjectivos definidores do carácter do lobo e do cordeiro.


b) O encontro do lobo e do cordeiro acontece “nas águas limpas de um regato”. É possível determinar a localização exacta do cenário onde se passa a acção? Justifique sua resposta.


c) No verso “foi que falaste mal de mim no ano passado”, a expressão grifada permite situar a acção no tempo? Explique sua resposta.


d) O que nos permite afirmar que o lobo e o cordeiro eram velhos conhecidos?


e) Enumere os argumentos usados pelo lobo para justificar o castigo imposto ao cordeiro.


f) A fábula apresenta um ensinamento ao leitor. Que ensinamento é este e quem o transmite?


g) Porque é que o segundo verso – (nem sempre o Bem derrota o Mal) - está colocado entre parênteses? O que significa a expressão “nem sempre”?


h) Complete a frase, explicando-a com as suas palavras: A razão do mais forte é a que vence no final, pois ____________________________________________________________ .

FÁBULA: DEFINIÇÃO E EXEMPLO

A Fábula é uma narrativa breve, tendo animais como personagens principais e que tem por objectivo transmitir certas moralidades.



Exemplo de uma Fábula:

A Fábula A Cigarra e a Formiga
Rendo a cigarra em cantigas
Passado todo o Verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.
Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.
A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso ajunta:
«No Verão em que lidavas?»
À pedinte ela pergunta.
Responde a outra: «Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora.»
«Oh bravo! (torna a formiga)
Cantavas? Pois dança agora.»
Rogou-lhe, que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza, e brio,
Algum grão, com que manter-se
‘Té voltar o aceso estio.
«Amiga, (diz a cigarra)
Prometo à fé de animal,
Pagar-vos até Agosto
Os juros, e o principal.»
A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso ajunta:
«No Verão em que lidavas?»
À pedinte ela pergunta.
Responde a outra: «Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora.»
«Oh bravo! (torna a formiga)
Cantavas? Pois dança agora.»


A LENDA DE S. MARTINHO

Exemplo de uma Lenda:


A Lenda de S. Martinho

“Há muitos anos, vivia na cidade de Sabária, na Hungria, um valente cabo-de-guerra romano. Quando lhe nasceu um filho, pôs-lhe o nome de Martinho, pois Marte, para os Romanos, era o Deus da Guerra.
Para que Martinho se habituasse às lides guerreiras, o pai levava-o, ainda muito pequeno, para os acampamentos. Mais tarde, Martinho foi viver para Itália com o pai, que entretanto tinha sido transferido para Pavia.
Martinho aos 15 anos tornou-se soldado e pouco depois foi enviado para Amiens no norte da Gália.
Conta a lenda, que Martinho fazia rondas diárias na cidade para assegurar a ordem pública.
Num dia 11 de Novembro, chuvoso e frio, Martinho, como habitualmente, saiu e deparou-se com um pobre e velho mendigo, que lhe estendeu a mão a pedir esmola.
Como no momento não tinha nada para oferecer, tirou a capa que tinha sobre os ombros e com um rasgo de espada partiu-a ao meio, cobrindo com metade o corpo enregelado do pobre mendigo, seguindo depois o seu caminho.
Não ia ainda muito longe, quando de repente a chuva parou e do céu irromperam quentes raios de sol, permitindo que o soldado, agora menos agasalhado, não tivesse frio.”

AS LENDAS

O QUE SÃO LENDAS?




As lendas são consideradas um caso à parte da literatura popular. Relatam factos tidos como acontecidos. Nas vilas, povoados e cidades têm lugar diversos acontecimentos. A estes acontecimentos verdadeiros juntam-se pouco a pouco pormenores, esquecem-se outros, dando origem a um produto simultaneamente real e fantástico.
Em tom de conclusão, podemos afirmar que as lendas assentam num fundamento histórico provável ou possível que é alterado pela intervenção do maravilhoso popular, cristão ou pagão.

FICHA DE LEITURA DO CONTO «A PALAVRA MÁGICA» DE VERGÍLIO FERREIRA

Leitura Orientada do conto «A Palavra Mágica» de Vergílio Ferreira



1. Lê o conto atentamente e responde às perguntas seguintes.


1.1. Fala da história contada neste conto.


1.2. Resume o episódio deste conto em que a palavra "inócuo" é utilizada pela primeira vez.


1.2.1. Que explicações sugeres para:


· A alteração fonética da palavra, de "inócuo" para "inoque"?
· A atribuição à palavra de um significado insultuoso como "lombeiro", "vadio"?


1.3. Ao longo da narrativa sucedem-se os episódios em que a palavra "inócuo" vai acumulando novos significados.


1.3.1. Delimita cada um desses episódios.


1.3.2. Explica a circunstância que dá origem a cada novo significado.


1.4. Como se justifica que a personagem com mais instrução, como por exemplo o juiz, não tenha detectado de imediato o verdadeiro significado da palavra-problema?


1.5. Como interpretas a discordância entre o juiz e o advogado acerca da gravidade da palavra "inócuo"?


1.6. Esclarecido e divulgado o verdadeiro sentido de "inócuo", seria de esperar que a palavra caísse no esquecimento ou deixasse de incomodar as pessoas. Foi o que aconteceu? Justifica a tua resposta com base no desenlace da narrativa.

1.7. " A vida, de facto, emendara o dicionário". Parece-te que o conto documenta esta afirmação? Justifica.

1.8. A este conto deu o autor o título de "Palavra Mágica".
· Procura explicar porquê.
· Sugere outro título adequado e sugestivo.

2.
2.1. O Silvestre é a personagem de que temos mais elementos de caracterização. Com base nesses elementos, parece-te que ele é de facto um "inócuo"? Justifica.


2.2. Várias personagens são referidas ao longo da narrativa. Selecciona duas que te tenham despertado a atenção e justifica a tua escolha.


2.3. Caracteriza Silvestre.

3.
3.1. Assinala todas as informações que o texto nos dá sobre o espaço onde se desenrola a acção.


3.2. Com base no registo que fizeste, indica:
· O espaço físico em que decorre a acção.
· O espaço social sugerido.


4. Lê atentamente, os seguintes textos:


Há palavras alegres e há palavras tristes. E essa tristeza ou essa alegria uma vez está nela, outras no modo de as dizer. Assim, certa palavra pode ter muitas e até contraditórias significações consoante o modo como é pronunciada.

Sebastião da Gama, Diário


As palavras
São como um cristal,
As palavras,
Algumas, um punhal,
Um incêndio.
Outras
Orvalho apenas.
(...)
Quem as escuta? Quem
As recolhe assim
Cruéis, desfeitas,
Nas suas conchas puras.

Eugénio de Andrade, Poemas



O mais perfeito dos sons humanos é a palavra. A poesia é a forma mais perfeita da palavra.


Han Yu (768-824)


5. Neste conto, não há referentes temporais, tenta explicar o motivo.


5.1. Classifica o narrador quanto à presença e à posição. Documenta a tua resposta com elementos do texto.

6. Tendo em conta que a palavra “inócuo” não pertence ao nível de língua utilizado pelos habitantes da aldeia, compreende-se, agora, facilmente, o aparecimento dos vários significados que lhe foram atribuídos pelas diferentes personagens.

6.1.Indica os vários significados da palavra “inócuo” mencionados no texto.

6.2. Repara que estes significados atribuídos à palavra e os outros que aparecem ao longo do conto, apesar de diferentes, possuem algo que os une. Indica o que é comum entre eles.

7. Explica, por palavras tuas, a última frase do excerto.


8. "O meu pagnon chamou-me inoque, mãe".
8.1. Identifica a função sintáctica dos diversos componentes da frase transcrita.

8.2. Reescreve o diálogo mãe/ filho utilizando o discurso indirecto.


Actividade individual



O poder da palavra


As palavras têm moda. Quando acaba a moda para umas começa a moda para outras. As que se vão embora voltam depois. Voltam sempre, e mudadas de cada vez. De cada vez mais viajadas.


Almada Negreiros

Sim,
conheço a força das palavras.
menos que nada.
menos que pétalas pisadas
num salão de baile.
e no entanto
se eu chamasse
quem dentre os homens me ouviria
sem palavras?


Carlos de Oliveira

"Sangrentas são as palavras e deixam vestígios através do tempo."


Herberto Helder

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.


Alexandre O'Neill


É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos
muitas espadas.


Eugénio de Andrade


1.
a) Relaciona os textos anteriores com o significado atribuído à palavra “inócuo” pelos habitantes da aldeia, que afinal continuou a perdurar.

b) Explica como é que as modas também influenciam as palavras.


2. Refere, tu também, uma palavra que não esteja no dicionário, mas que utilizes com frequência.


3. Selecciona a citação que achares mais sugestiva e comenta-a.

«A PALAVRA MÁGICA» DE VERGÍLIO FERREIRA



Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ninguém. Se às vezes guerreava, com palavras azedas para cá e para lá, era apenas com os fundos da própria consciência. Viúvo, sem filhos, dono de umas leiras herdadas, o que mais parecia inquietá-lo era a maneira de alijar bem depressa o dinheiro das rendas. Semeava tão facilmente as economias, que ninguém via naquilo um sintoma de pena ou de justiça — mesmo da velha —, mas apenas um desejo urgente de comodidade. Dar aliviava. Pregavam-lhe que o Paulino ia logo de casa dele derretê-lo em vinho, que o Carmelo não comprava nada, livros ou cadernos ao filho, que andava na instrução primária. As moedas rolavam-lhe para dentro da algibeira e com o mesmo impulso fatal rolavam para fora, deixando-lhe, no sítio, a paz.
Ora um domingo, o Silvestre ensarilhou-se, sem querer, numa disputa colérica com o Ramos da loja. Fora o caso que ao falar-lhe, no correr da conversa, em trabalhadores e salários, Silvestre deixou cair que, no seu entender, dada a carestia da vida, o trabalho de um homem de enxada não era de forma alguma bem pago. Mas disse-o sem um desejo de discórdia, facilmente, abertamente, com a mesma fatalidade clara de quem inspira e expira. Todavia, o Ramos, ferido de espora, atacou de cabeça baixa:
— Que autoridade tem você para falar? Quem lhe encomendou o sermão?
— Homem! — clama o Silvestre, de mão pacífica no ar. — Calma aí, se faz favor. Falei por falar.
— E a dar-lhe. Burro sou eu em ligar-lhe importância. Sabe lá você o que é a vida, sabe lá nada. Não tem filhos em casa, não tem quebreiras de cabeça. Assim, também eu.
— Faço o que posso — desabafou o outro.
— E eu a ligar-lhe. Realmente você é um pobre diabo, Silvestre. Quem é parvo é quem o ouve. Você é um bom, afinal. Anda no mundo por ver andar os outros. Quem é você, Silvestre amigo? Um inócuo, no fim de contas. Um inócuo é o que você é.
Silvestre já se dispusera a ouvir tudo com resignação. Mas, à palavra “inócuo”, estranha ao seu ouvido montanhês, tremeu. E à cautela, não o codilhassem por parvo, disse:
— «inoque» será você.
Também o Ramos não via o fundo ao significado de inócuo. Topara por acaso a palavra, num diálogo aceso de folhetim, e gostara logo dela, por aquele sabor redondo a moca grossa de ferros, cravada de puas. Dois homens que assistiam ao barulho partiram logo dali, com o vocábulo ainda quente da refrega, a comunicá-lo à freguesia:
— Chamou-lhe tudo, o patife. Só porque o pobre entendia que a jorna de um homem é fraca. Que era um paz-de-alma. E um «inoque».
— Que é isso de «inoque»?
— Coisa boa não é. Queria ele dizer na sua que o Silvestre não trabalhava, que era um lombeiro, um vadio.
Como nesse dia, que era domingo, Paulino entrara em casa com a bebedeira do seu descanso, a mulher praguejou, como estava previsto, e cobriu o homem de insultos como não estava inteiramente previsto:
— Seu bêbado ordinário. Seu «inoque» reles.
Quando a palavra caiu da boca da mulher, vinha já tinta de carrascão. E desde aí, «inoque» significou, como é de ver, vadio e bêbado.
Ora tempos depois apareceu na aldeia um sujeito de gabardina, a vender drogas para todas as moléstias dos pobres. Pedra de queimar carbúnculos, unguentos de encoirar, solda para costelas quebradas. Vendeu todo o sortido. Mas logo às primeiras experiências, as drogas falharam. Houve pois necessidade de marcar a ferro aquela roubalheira de gabardina e unhas polidas. E como o vocabulário dos pobres era curto, alguém se lembrou da palavra milagrosa do Ramos. Pelo que, «inoque» significou trampolineiro ou ladrão dos finos. Mas como havia ainda os ladrões dos “grossos”, não foi difícil meter dentro da palavra mais um veneno.
Como, porém, as desgraças e a cólera do povo pediam cada dia termos novos para se exprimirem, “inócuo” foi inchando de mais significações. Quando a Rainha deu um tiro de caçadeira, num dia de arraial, ao homem da amante, chamaram-lhe, evidentemente, «inoque», por ser um devasso e um assassino de caçadeira. Daí que fosse fácil meter também no «inoque» o assassino de faca e a cróia de porta aberta.
“Inócuo” dera a volta à aldeia, secara todo o fel das discórdias, escoara todo o ódio da população. A moca grossa de ferro, seteada de puas, era agora uma arma terrível, quase desleal, que só se usava quando se tinha despejado já toda a cartucheira de insultos. Até que o Perdigão dos Cabritos entrou pela ponte norte da aldeia, com o cavalo carregado de reses, num dia de feira, e se azedou com o taberneiro, quando trocava um borrego por vinho. De olhos chamejantes, perdido, já no quente da refrega, o taberneiro atirou-lhe o verbo da maldição. Houve quem achasse desmedida a vingança do homem. Perdigão arriou:
— «Inoque» será você.
Também ele não sabia que veneno tinham despejado na palavra, mas, pelo sim pelo não, aliviou. E pela tarde, enfardelou o termo infame com as peles da matança, e abalou com ele pela ponte sul. Longos meses a palavra maldita andou por lá a descarregar o ódio das gentes. Até que um dia voltou a entrar na aldeia, não já pela ponte sul que dava para a Vila, mas pela ponte norte que levava a terras sem nome. Vinha em farrapos, na boca de um caldeireiro, mais estropiada, coberta da baba de todos os rancores e de todos os crimes. Quando deitava um pingo num caneco de folha, o caldeireiro pegou-se de razões com o freguês. O dono do caneco correu uma mão amiga pelas costas do vagabundo:
— Lá ver isso, velhinho. O combinado foram cinco tostões.
— Não me faça festas que eu não sou mulher, seu «inoque» reles.
E “inócuo” significou um nome feio para um homem. Então o ajudante, ou o que era, do caldeireiro, tentou deitar água na fogueira.
— Cale-se também você, seu «inoque» ordinário. A mim não me mata você à fome como fez a seu pai.
Porque “inócuo” também queria dizer parricida. Então o Ramos, que passava perto, tomou a palavra excomungada nas mãos e pediu ao velho que a abrisse, para ver tudo o que já lá tinha dentro. Um cheiro pútrido a fezes, a pus, a vinagre, alastrou pelo espanto de todos em redor. Com os dedos da memória, o caldeireiro foi tirando do ventre do vocábulo restos de velhos significados, maldições, ódios, desesperos. “Inócuo” era “bêbado”, ‘ladrão”, “incendiário’, ‘pederasta’, e, uma que outra vez, um desabafo ligeiro como “poça” ou “bolas”. Para o calão da gente fina, que topara a palavra na cozinha, nos trabalhos do campo, soube-se um dia que significava ainda 'escroque', «souteneur», e mais.
A aldeia em peso tremeu. Era possível a qualquer apanhar com o palavrão na cara e ficar coberto de peste. Eis porém que uma vez o filho do Gomes, que andava no colégio da Vila, insultado de «inoque» por um colega, numa partida de bilhar, lembrou-se à noite de ver no dicionário a fundura vernácula da ofensa. Procurou «inoque». Não vinha. Procurou «noque». Também não vinha. Furioso, buscou à toa, «quinoque», «moque», «soque». Nada. Quando a mãe o procurou, para ver se estudava, encontrou-o às marradas no dicionário. Choroso, o rapaz declarou:
— O meu «pagnon» chamou-me «inoque», mãe. Queria saber o que era. Mas não vem no dicionário.
— Não vejas! — clamou a mulher, de braços no ar. — Deixa lá! Não te importes.
— Mas que quer dizer?
— Coisas ruins, meu filho. Herege, homem sem religião e mais coisas más. Não vejas!
Começaram então a aparecer as primeiras queixas no tribunal da Vila, contra a injúria de «noque», «inoque» e, finalmente, de “inócuo”, consoante a instrução de cada um. Como a palavra estropiada era um termo bárbaro nos seus ouvidos cultos, o juiz pedia a versão da injúria em linguagem correcta, sendo essa versão que instruía os autos.
— Chamou-me «noque».
— Absolutamente. Mas que queria ele dizer na sua?
— Pois queria dizer que eu era ladrão.
E escrevia-se “ladrão”. Pelo mesmo motivo, gravava-se a ofensa, de outras vezes, nos termos de “assassino”, “devasso”, ou “bêbedo”.
Ora um dia foi o próprio Bernardino da Fábrica que moveu um processo ao guarda-livros pela injúria de «inócuo». Metida a questão nos trilhos legais, o Bernardino procurou o juiz, para ver se podia ajustar, previamente, uma bordoada firme no agressor. Mas aí, o juiz atirou uma palmada à coxa curta, clamou:
— Homem! Agora entendo eu. «Noque» era ‘inócuo’!
E admitindo que o vocábulo contivesse um veneno insuspeito, pegou num dicionário recente, o último modelo de ortografia e significados. Então pasmou de assombro, perante o escuro mistério que carregara de pólvora o termo mais benigno da língua: “inocuo’ significa apenas «que não faz dano, inofensivo”. E pôs o dicionário aberto diante da ofensa de Bernardino. O industrial carregou a luneta, e longo tempo, colérico, exigiu do livro insultos que lá não estavam.
— Nada feito — repetia o juiz. — O homem chamou-lhe, correctamente, “pessoa incapaz de fazer mal a alguém”.
— Mas há a intenção — opôs o advogado, mais tarde, quando se voltou ao assunto. — Há o sentido que toda a gente liga à palavra.
— Nada feito — insistia o juiz. — “Inócuo” é ‘inofensivo’ até nova ordem.
Então o advogado desabafou. Também ele sabia, como toda a gente culta, que “inócuo” era um pobre diabo dum termo que não fazia mal a ninguém. Sabia-o, com um saber analítico, desde as aulas de Latim do seu Padre Mestre. Mas não ignorava também que o ódio humano nem sempre conseguia razões para se justificar. E nesse caso, qualquer palavra, mesmo inofensiva, era um pendão desfraldado no pau alto da vingança. Bernardino fora ofendido. Mas podia querer amanhã ofender e as razões serem curtas para o seu rancor. Uma palavra informe, soprada de todos os furores, seria então a melhor arma. Despir o mastro da bandeira seria desnudar-se na dureza bárbara do pau. ‘Inócuo’ era uma maravilha para a última defesa da racionalidade humana, pelos ocos esconderijos onde podiam ocultar-se todos os rancores e maldições. “Inócuo” era um benefício social. Não havia que emendar-se a vida pelo dicionário. Havia que forçar-se o dicionário a meter a vida na pele.
— Cultive-se o “inócuo”. Salvemo-lo, para nos salvarmos.
Desgraçadamente, porém, os receios do advogado eram vãos. A vida, de facto, emendara o dicionário. Como bola de neve, “inócuo” rolara do ódio alto dos homens e longo tempo levaria a derreter o calor da compreensão e da justiça. Foi assim que o filho do Gomes, depois de ter encontrado a correspondência vernácula da injúria do «pagnon», tentou reabilitar a palavra excomungada. Esbaforido, foi com o dicionário aberto no sítio maldito, da mãe para o pai, do pai para os amigos. Mas ninguém o entendeu. «Noque» ou “inócuo” era um anátema verde de pus.
— Que importa o que dizem? — clamou o heroísmo do rapaz. — Podem chamar-me «inoque» ou “inócuo”, que não ligo. Agora sei o que quer dizer.
Dias depois, porém, um colega precisou de o insultar, e arremessou-lhe outra vez com o termo nefando. Toda a gente conhecia já a opinião do dicionário. Mas o furor era sempre mais forte do que o simples livro impresso.
Pelo que, nessa noite, o filho do Gomes não dormiu, preocupado apenas com descobrir uma maneira profícua de sovar bem o colega, para desforra integral.


in Contos, Vergílio Ferreira

NOTAS BIOGRÁFICAS DE ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY

Ficha Informativa sobre o autor - ANTOINE DE SAINT- EXUPÉRY

"Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos."


Antoine de Saint-Exupéry nasceu em Lyon, França em 29/06/1900 e morreu em 1944 (local ignorado). Foi aviador de profissão e escritor por devoção. Foi piloto do correio aéreo que na década de 30 voava das possessões francesas na África para Argentina e Chile, fazendo escala em Natal, o ponto sul-americano mais próximo do continente africano. Um dos pioneiros da aviação comercial francesa, organizou as linhas da Patagónia e empreendeu voos de Paris à Saigon e de New York à Terra do Fogo. Actuou de maneira intensa durante a 2ª Guerra Mundial unindo-se à aviação Aliada em 1942. De espírito audaz, sentia-se melhor do que nunca quando estava no ar e, de preferência realizando os voos mais arriscados.
As experiências que viveu nas suas missões heróicas, soube transportar para seus livros de maneira profunda. Seu livro mais conhecido «O Pequeno Príncipe» é um convite à reflexão para que as pessoas se humanizem, se cativem e se percebam.
Antoine foi oficialmente contra o governo nazista. Quando «O Pequeno Príncipe» foi publicado em 1943, a França estava ocupada pelo exército alemão.

«O Principezinho» de Antoine de Saint-Éxupery - Excerto 2

Texto 2


No dia seguinte o principezinho voltou.
- Era melhor teres vindo à mesma hora - disse a raposa. Se vieres, por exemplo, às quatro da tarde, às três, já eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... São precisos rituais.
- O que é um ritual? - perguntou o principezinho.
- É uma coisa de que toda a gente se esqueceu também - disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias e uma hora diferente das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um ritual. Dançam à quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira então é o dia maravilhoso! Assim, posso ir passear até à vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias!
Assim o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:
- Ah! Eu vou chorar.
- A culpa é tua - disse o principezinho. Eu não te queria fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...
- Pois quis - disse a raposa.
- Mas tu vais chorar! - disse o principezinho.
- Vou - disse a raposa.
- Então, não ganhaste nada com isso!
- Ai isso é que ganhei! - disse a raposa. – Por causa da cor do trigo...
Depois ela acrescentou:
- Anda, vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua é a única no mundo. Quando vieres ter comigo, dou-te um presente de despedida: conto-te um segredo.
O principezinho lá foi ver as rosas outra vez:
- Vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem vós cativastes a ninguém. Sois como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Ela é agora única no mundo.
E as rosas ficaram bastante incomodadas.
- Sois belas, mas vazias - disse ele ainda. Não se pode morrer por vós. Claro que a minha rosa, para um transeunte qualquer, é perfeitamente igual a vós. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus debaixo de uma redoma. Foi a ela que abriguei com o pára-vento. Foi dela que eu matei as larvas (excepto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. Porque, ela é a minha rosa.
E voltou, então, à raposa:
- Adeus - disse ele...
- Adeus - disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos...
- O essencial é invisível para os olhos - repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.
- Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que fez a tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... - repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade - disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela tua rosa...
- Eu sou responsável pela minha rosa... - repetiu o principezinho, para jamais se esquecer.


Adaptado de «O Principezinho» de Antoine Saint Exupéry



COMPREENSÃO


1. “Era melhor teres vindo à mesma hora”.
1.1. Porque tem a raposa esta opinião?


2. A determinado momento, a raposa está quase a chorar. Porquê?


3. O Principezinho pensa que fez mal em prender a raposa a si, mas a raposa tem uma opinião diferente: “Ai, isso é que ganhei! Por causa do trigo...”
3.1. O que ganhou afinal a raposa?


4. De acordo com a raposa, o que torna uma coisa importante para nós?


5. Explique por palavras suas o segredo da raposa.


6. Atribua um título ao texto e justifique a escolha.


7. Tenha presente os textos 1 e 2.
7.1. Considera que foi proveitosa para o principezinho a vinda à terra? Justifique.


ESTRUTURA DA LÍNGUA


1. Distinguir o tipo e formas de frases (cf. w
ww.priberam.pt/dlpo/gramatica/gramatica51.aspx)


“O principezinho voltou no dia seguinte.”
“- O que é um ritual?”
“- Ai! – exclamou a raposa. – Ai que me vou pôr a chorar...”

sexta-feira, 21 de março de 2008

Em honra da(s) MULHER(ES)


A Mulher


Ó Mulher! Como és fraca e como és forte!
Como sabes ser doce e desgraçada!
Como sabes fingir quando em teu peito
A tua alma se estorce amargurada!

Quantas morrem saudosa duma imagem.
Adorada que amaram doidamente!
Quantas e quantas almas endoidecem
Enquanto a boca rir alegremente!

Quanta paixão e amor às vezes têm
Sem nunca o confessarem a ninguém
Doce alma de dor e sofrimento!

Paixão que faria a felicidade.
Dum rei; amor de sonho e de saudade,
Que se esvai e que foge num lamento!

Florbela Espanca

Dia da Poesia... e Também da Árvore


Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.

Ricardo Reis



Autopsicografia


O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

Fernando Pessoa


Agora as palavras


Obedecem-me agora muito menos,
as palavras. A propósito
de nada resmungam, não fazem
caso do que lhes digo,
não respeitam a minha idade.
Provavelmente fartaram-se da rédea,
não me perdoama mão rigorosa, a indiferença
pelo fogo-de-artifício.
Eu gosto delas, nunca tive outra
paixão, e elas durante muitos anos
também gostaram de mim: dançavam
à minha roda quando as encontrava.
Com elas fazia o lume,
sustentava os meus dias, mas agora
estão ariscas, escapam-se por entre
as mãos, arreganham os dentes
se tento retê-las. Ou será que
já só procuro as mais encabritadas?

Eugénio de Andrade



Cada árvore é um ser para ser em nós


Cada árvore é um ser para ser em nós
Para ver uma árvore não basta vê-la
a árvore é uma lenta reverência
uma presença reminiscente
uma habitação perdidae encontrada
À sombra de uma árvore
o tempo já não é o tempo
mas a magia de um instante que começa sem fim
a árvore apazigua-nos com a sua atmosfera de folha
se de sombras interiores
nós habitamos a árvore com a nossa respiração
com a da árvore
com a árvore nós partilhamos o mundo com os deuses

António Ramos Rosa



“Árvores do Alentejo”

Horas mortas... Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!

Florbela Espanca

quarta-feira, 12 de março de 2008

«O Principezinho» de Antoine de Saint-Éxupery

Excerto 1



E foi então que apareceu a raposa:
- Bom dia - disse a raposa.
- Bom dia - respondeu com delicadeza* o principezinho, que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui - disse a voz, debaixo da macieira...
- Quem és tu? - perguntou o principezinho. Tu és bem bonita...
- Sou uma raposa - disse a raposa.
- Vem brincar comigo - propôs o principezinho. Estou tão triste...
- Eu não posso brincar contigo - disse a raposa. Não me cativaram ainda.
- Ah! Desculpa - disse o principezinho.
Após uma reflexão, acrescentou:
- Que quer dizer "cativar"*?
- Tu não és daqui - disse a raposa. Que procuras?
- Procuro os homens - disse o principezinho. Que quer dizer "cativar"?
- Os homens, disse a raposa, têm espingardas e caçam. É bem incómodo! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que fazem. Tu procuras galinhas?
- Não - disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?
- É uma coisa muito esquecida - disse a raposa. Significa "criar laços...".
- Criar laços?
- Exactamente - disse a raposa. Tu não és para mim senão um rapaz inteiramente igual a cem mil outros rapazinhos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativares, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo...
- Começo a compreender - disse o principezinho. Existe uma flor... eu creio que ela me cativou...
- É possível - disse a raposa. Vê-se tanta coisa na Terra...
- Oh! Não foi na Terra - disse o principezinho.
A raposa pareceu intrigada:
- Num outro planeta?
- Sim.
- Há caçadores nesse planeta?
- Não.
- Que bom! E galinhas?
- Também não.
- Nada é perfeito - suspirou a raposa. A perfeição não existe.
Mas a raposa voltou à sua ideia.
- A minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens caçam-me a mim. Todas as galinhas são iguais e todos os homens se parecem também. É por isso que eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativares, será como se o Sol iluminasse a minha vida. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos fazem-me esconder debaixo da terra.
Os teus hão-de atrair-me para fora da toca, como uma música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me dizem nada. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. Como o trigo é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu hei-de amar o barulho do vento atrás do trigo...
A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor... cativa-me! - disse ela.
- Tenho muito gosto - respondeu o principezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou - disse a raposa. Os homens já não têm tempo de tomar conhecimento de nada. Compram tudo pronto nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!
- Que é preciso fazer? - perguntou o principezinho.
- É preciso ser paciente - respondeu a raposa. Primeiro, sentas-te um pouco afastado de mim, assim, na relva. Eu olho para ti pelo canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia que passe, te sentarás mais perto...

Adaptado de «O Principezinho» de Antoine Saint Exupéry


I
COMPREENSÃO


1. Onde se passa esta história?

2. Identifique as personagens do excerto.

3. Caracterize-as física e psicologicamente.

4. O que há em comum entre estas personagens?

5. Qual é a palavra que serve de base ao diálogo entre a raposa e o principezinho?

6. De acordo com a raposa, o que é preciso para fazer um amigo?
7. Que crítica faz a raposa à nossa sociedade, no que diz respeito ao acto de fazer amigos?

8. Atribua um título ao excerto, justificando a sua escolha.

9. “A linguagem é fonte de mal-entendidos”.

a) Explica o sentido desta afirmação.

b) Estás de acordo com esta afirmação? Justifica a resposta.

ESTRUTURA DA LÍNGUA

1. Encontre sinónimos para as seguintes palavras: delicadeza, cativar e intrigada.

2. “- Bom dia – disse a raposa.
- Bom dia – respondeu com delicadeza* o principezinho, que se voltou, mas não viu nada.”

2.1. Identifique o emissor, o receptor, o canal, o código e a mensagem da frase.

II

“Amigo” é um sorriso
de boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
“Amigo” é a solidão derrotada!

Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca

Com base neste excerto do poema “Amigo”, compõe um texto curto, mas bem estruturado, salientando a importância da verdadeira amizade.

FICHA DE TRABALHO SOBRE O CONTO POPULAR «O SAPATEIRO POBRE»

1. Lê atentamente o texto que se segue:

O Sapateiro Pobre


Havia um sapateiro, que trabalhava à porta de casa, e todo o santíssimo dia cantava; tinha muitos filhos, que andavam rotinhos pela rua, pela muita pobreza, e à noite enquanto a mulher fazia a ceia, o homem puxava da viola e tocava os seus batuques muito contente.
Defronte dele morava um ricaço, que reparou naquele viver, e teve pelo sapateiro tal compaixão, que lhe mandou dar um saco de dinheiro, porque o queria fazer feliz.
O sapateiro lá ficou admirado; pegou no dinheiro e à noite fechou-se com a mulher para o contarem. Naquela noite o sapateiro já não tocou viola; as crianças andavam a brincar pela casa e faziam barulho, fizeram-no errar a conta e ele teve de lhes bater, e ouviu-se uma choradeira, como nunca tinham feito quando tinham mais fome. Dizia a mulher:
– E agora, o que havemos nós de fazer a tanto dinheiro?
– Enterra-se.
– Perdemo-lhe o tino; é melhor metê-lo na arca.
– Mas podem roubá-lo, o melhor é pô-lo a render.
– Ora isso é ser onzeneiro.
– Então levantam-se as casas, e fazem-se de sobrado, e depois arranjo a oficina toda pintadinha.
– Isso não tem nada com a obra; o melhor era comprarmos uns campinhos; eu sou filha de lavrador e puxa-me o corpo para o campo.
– Nessa não caio eu.
– Pois o que me faz conta é ter terra; tudo o mais é vento.
As coisas foram-se azedando, palavra puxa palavra, o homem zanga-se, atiça duas solhas na mulher, berreiro de uma banda, berreiro de outra, naquela noite não pregaram olho. O vizinho ricaço reparava em tudo, e não sabia explicar aquela mudança. Por fim o sapateiro disse à mulher:
– Sabes que mais, o dinheiro tirou-nos a nossa antiga alegria! O melhor era ir levá-lo outra vez ao vizinho dali defronte, e que nos deixe cá com aquela pobreza que nos fazia amigos um do outro.
A mulher abraçou aquilo com ambas as mãos e o sapateiro com vontade de recobrar a sua alegria e a da mulher e dos filhos, foi entregar o dinheiro e voltou para a sua tripeça a cantar e trabalhar como o costume.

Contos Tradicionais Portugueses, Publicações Europa-América


I. Responde as seguintes questões de forma CLARA e COMPLETA.

Para ajudar-te a compreender o texto, são dados alguns sinónimos para algumas palavras “difíceis”.


1. Sublinha o sinónimo correspondente à palavra que se encontra em itálico. Só existe uma opção correcta, para cada frase.

a. … “isso é ser onzeneiro” (linha 16)

a) comerciante b) avarento c) esperto c) pobre

b. …”o homem zanga-se, atiça” … (l. 23)

a) prega (bater) b) acende c) sacode d) esfrega


c. … “atiça duas solhas na mulher” … (l. 24)

a) peixes marinhos b) gargalhadas c) moedas d) bofetadas

d. … “voltou para a sua tripeça”… (l. 31)

a) ofício de sapateiro b) fazenda c) festa d) terra


2. Identifica as personagens deste texto.

3. Caracteriza-as.

4. Refere o que o vizinho decidiu fazer.
5. Explica o que aconteceu na casa do sapateiro depois de ter recebido a oferta.
6. Aponta a forma como o sapateiro e a mulher resolveram o conflito.

7. Salienta a moral, o ensinamento que este conto pretende transmitir.

8. Este texto é um conto popular. Situa a acção no tempo e no espaço, mencionando as características ou a estrutura deste tipo de textos.

9. Este conto contém várias expressões populares.

9.1. Explica o sentido das seguintes:

a) … ”Perdemo-lhe o tino”… (l. 14)

b) … “puxa-me o corpo para o campo” … (l. 20)

c) … “tudo o mais é vento” … (l. 22)

d) ”palavra puxa palavra” … (l. 23)

II. Lê, atentamente, o primeiro e o último parágrafo deste conto tradicional. A tua tarefa consiste em redigir a parte do conto em falta.


HISTÓRIA DO COMPADRE RICO E DO COMPADRE POBRE

Moravam numa aldeia dois compadres. Um era pobre e o outro rico, mas muito miserável. Naquela terra era uso todos quantos matavam porco dar um lombo ao abade. O compadre rico, que queria matar porco sem ter de dar o lombo, lamentou-se ao pobre, dizendo mal de tal uso.
Este deu-lhe de conselho...

(...)

Desta maneira o compadre pobre teve porco e vinho sem lhe custar nada.

Exemplo de Conto Tradicional/ Popular «O caldo de Pedra»

O Caldo de Pedra


Um frade andava ao peditório; chegou à porta de um lavrador, mas não lhe quiseram aí dar nada. O frade estava a cair com fome, e disse:
- Vou ver se faço um caldinho de pedra.
E pegou numa pedra do chão, sacudiu-lhe a terra e pôs-se a olhar para ela para ver se era boa para fazer um caldo. A gente da casa pôs-se a rir do frade e daquela lembrança. Diz o frade:
- Então nunca comeram caldo de pedra? Só lhes digo que é uma coisa muito boa.
Responderam-lhes:
- Sempre queremos ver isso.
Foi o que o frade quis ouvir. Depois de ter lavado a pedra, disse:
- Se me emprestassem aí um pucarinho.
Deram-lhe uma panela de barro. E ele encheu-a de água e deitou-lhe a pedra dentro.
- Agora se me deixassem estar a panelinha aí ao pé das brasas.
Deixaram. Assim que a panela começou a chiar, disse ele:
- Com um bocadinho de unto é que o caldo ficava de primor.
Foram-lhe buscar um pedaço de unto. Ferveu, ferveu, e a gente da casa pasmada para o que via. Diz o frade, provando o caldo:
- Está um bocadinho insosso; bem precisa de uma pedrinha de sal. Também lhe deram o sal. Temperou, provou, e disse:
- Agora com uns olhinhos de couve ficava que os anjos o comeriam.
A dona da casa foi à horta e trouxe-lhe duas couves tenras. O frade limpou-as, e ripou-as com os dedos deitando as folhas na panela.
Quando os olhos já estavam aferventados disse o frade:
- Ai, um naquinho de chouriço é que lhe dava uma graça…
Trouxeram-lhe um pedaço de chouriço; ele botou-o à panela, e enquanto se cozia, tirou do alforge pão, e arranjou-se para comer com vagar. O caldo cheirava que era um regalo. Comeu e lambeu o beiço; depois de despejada a panela ficou a pedra no fundo; a gente da casa, que estava com os olhos nele, perguntou-lhe:
- Ó senhor frade, então a pedra?
Respondeu o frade:
- A pedra lavo-a e levo-a comigo para outra vez.
E assim comeu onde não lhe queriam dar nada.


Teófilo Braga, “Contos Tradicionais do Povo Português”, vol. I

DEFINIÇÃO DE CONTO

O Conto

“Quem conta um conto, acrescenta um ponto.”


1. É um género narrativo que se caracteriza por apresentar um número reduzido de personagens, uma concentração de acontecimentos e indicações espácio-temporais indeterminadas.

2. Os dicionaristas portugueses insistem em atribuir à palavra “conto” um sentido muito vizinho de “fábula”, isto é, uma narração que encerra uma lição moral.

3. Os autores e o público preferem defini-lo como um relato de aventuras, que realmente aconteceram (e também acarretam um sentido moralizante).

No princípio do século XIX desaparece a preocupação moralizante. Mas subsiste a narrativa que se prende à realidade, quer esta seja histórica, quer seja do domínio da experiência de cada autor.

O conto foi iniciado por Gonçalo Fernandes Trancoso, em “Contos e Histórias de Proveito e Exemplo” (1575). Embora tenha gozado durante muitos séculos de grande popularidade, foi com Eça de Queirós e Fialho de Almeida, que o conto adquire uma autonomia literária e o liberta da sua condição secundária.

Nos nossos dias, destaca-se, por exemplo, Miguel Torga com os seus “Contos da Montanha” e os seus “Bichos” ou Sophia de Mello Breyner Andresen com “A menina do Mar”, “O Cavaleiro da Dinamarca”, entre outros.

FICHA DE LEITURA DO CONTO «A AIA» DE EÇA DE QUEIRÓS

Após a leitura do conto, proponho-te a realização desta ficha de leitura.

I. Preparação

1. Ler atentamente o texto e apreender o seu sentido global.
2. Sublinhar as informações essenciais.

II. Estrutura/ Acção

1.1.
Delimita os momentos fundamentais da narrativa: situação inicial, desenvolvimento e desenlace.

1.2. Explica o modo de organização das sequências narrativas (encadeamento, encaixe ou alternativa).
1.3. Classifica o conto no que diz respeito à delimitação da acção (narrativa fechada ou aberta). Justifica.

III. Personagens

2.1. Indica as personagens intervenientes, referindo o relevo que têm na acção.

2.2. O rei era "moço e valente".

a) Regista todos os elementos de caracterização directa do rei.

2.3. Regista igualmente os diversos elementos de caracterização directa do irmão do rei.

2.3.1. A apresentação que é feita desta personagem está de acordo com o(s) acto(s) que executa? Justifica.

2.4. Atendendo aos traços característicos da aia, parece-te lógico a sua atitude final? Expõe, claramente o teu raciocínio.

2.5. Com base nos elementos que o conto te fornece sobre a personagem, elabora um pequeno texto de caracterização da protagonista.

2.6. Neste conto, o conflito entre personagens é também um conflito de valores intemporais.

2.6.1. Que personagens defendem valores conotados com o Bem? E com o Mal?

2.6.2. Identifica esses valores, através dos substantivos abstractos que os interligam.

IV. Espaço

3.1. Especifica o espaço físico onde se desenrola a acção.

3.2. A sala do tesouro é objecto de uma breve descrição. Localiza-a na narrativa.

3.3. Nessa passagem descritiva, pretende-se acentuar a sensação visual, sobretudo a notação de brilho. Confirma com elementos do texto.

3.4. Caracteriza o espaço social em que a acção se desenvolve.

V. Tempo

4.1. Regista marcas do tempo cronológico.

4.2. Que tempo histórico é sugerido? Justifica.

4.2.1. Retira do texto todas as referências que indiquem o fluir do tempo.

VI. Narrador

5.1. Classifica o narrador quanto à presença.

5.2. Caracteriza-o no que diz respeito à posição (subjectivo ou objectivo). Justifica.

VII. O Título

6.1. Tece um breve comentário a cada uma destas sugestões de outro título para este conto:

- Luta pelo poder;
- A mulher que sacrificou o filho para salvar o reino;
- O Principezinho.

6.2. O título escolhido pelo autor - «A Aia» - parece-te sugestivo? Porquê?

6.3. Refere a importância do título neste conto.

6.4. Identifica o nome e o valor da expressão inicial “Era uma vez...”.

VIII. Questões de Linguagem

1. Sublinha, nos sete primeiros parágrafos, os substantivos no grau diminutivo.
1.1. Interpreta o seu uso.

2. Lê atentamente o 4º e 7º parágrafos.

2.1. Regista os adjectivos que caracterizam o irmão do rei.

2.2. No 4º parágrafo, a caracterização é enriquecida com uma comparação. Identifica-a.

2.3. Mostra o contraste entre o irmão do rei e o pequeno príncipe.

3. No 3º parágrafo, a dor da rainha é expressa pelo verbo chorar, constituinte do predicado de três orações distintas. Identifica-as.

3.1. Procura explicar de que forma cada um dos advérbios que acompanha o verbo chorar lhe modifica o sentido.

3.2. Como interpretas o emprego de "chorou" nas duas primeiras orações e "chora" na última?

4. No 9º e 10º parágrafos, a acção desenrola-se rapidamente. Faz o levantamento de verbos e advérbios que conferem um ritmo rápido à narração.

5. "...ela foi assim conduzida para a câmara dos tesouros" (16º parágrafo)

5.1. Qual a classe gramatical da palavra sublinhada?

5.2. Identifica o sujeito, predicado e complemento da expressão transcrita.

5.3. Reescreve-a utilizando a forma activa.

6. No penúltimo parágrafo utiliza-se o discurso directo.

6.1. Rescreve o antepenúltimo e o penúltimo parágrafo utilizando o discurso indirecto.

6.2. Qual das duas opções te parece mais expressiva? Justifica.

CONTO «A AIA» DE EÇA DE QUEIRÓS

A Aia



Era uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas.
A lua cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de conquista e de fama, começava a minguar, quando um dos seus cavaleiros apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos, trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, trespassado por sete lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio.
A rainha chorou magnificamente o rei. Chorou ainda desoladamente o esposo, que era formoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai, que assim deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela força e forte pelo amor.
Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem depravado e bravio; consumido de cobiças grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros, e que havia anos vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no seu fojo, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guizo de oiro fechado na mão!
Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas era um escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de Verão. O mesmo seio os criara. Quando a rainha, antes de adormecer, vinha beijar o principezinho, que tinha o cabelo louro e fino, beijava também, por amor dele, o escravozinho, que tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas. Somente, o berço de um era magnífico de marfim entre brocados, e o berço de outro, pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque, se um era o seu filho, o outro seria o seu rei.
Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando em outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam, nesse reino celeste, retomar em torno dele a sua vassalagem. E ela, um dia, por seu turno, remontaria num raio de lua a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta dos seus perfumes; seria no céu como fora na terra, e feliz na sua servidão.
Todavia, também ela tremia pelo seu principezinho! Quantas vezes, com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam, antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel, de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanges da sua horda! Pobre principezinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava nos braços. Mas o seu filho chalrava ao lado, era para ele que os seus braços corriam com um ardor mais feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha a recear a vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humildade ditosa, cobria o seu corpinho gordo de beijos pesados e devoradores, dos beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.
No entanto, um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura, como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia pode transpor.
Ora uma noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dois meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos vergueis reais. Embrulhada à pressa num pano, atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas... Num relance tudo compreendeu: o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga, e, tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um brocado.
Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro sobre a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam lanternas. Olhou, correu o berço de marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança como se arranca uma bolsa de oiro, e, abafando os seus gritos no manto, abalou furiosamente.
O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no silêncio e na treva.
Mas brados de alarme atroaram, de repente, o palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho! Ao avistar o berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caiu sobre as lajes num choro, despedaçada. Então, calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de verga... O príncipe lá estava quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a face entre os seus cabelos de oiro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto.
E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore. Era o capitão das guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porém, mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de archeiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de sangue. Mas, ali dor sem nome! O corpozinho tenro do príncipe lá ficara também envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado! Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas, quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lho mostrar, o príncipe que despertara.
Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?... Lá estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho... Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria extática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração... E de entre aquela multidão que se apertava na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fosse recompensada magni6camente a serva admirável que salvara o rei e o reino.
Mas como? Que bolas de oiro podem pagar um filho? Então um velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao Tesoiro real, e escolhesse de entre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores tesouros da Índia, todas as que o seu desejo apetecesse...
A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse a rigidez, com um andar de morta, como um sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos Tesouros. Senhores, aias, homens de armas, seguiam, num respeito tão comovido, que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes. As espessas portas do Tesoiro rodaram lentamente. E, Quando um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já clara e rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de oiro e pedrarias! Do chão de rocha (1) até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam, cintilavam, refulgiam os escudos de oiro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas daquele reino, acumuladas por cem réis durante vinte séculos. Um longo – ah! – lento e maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera. Depois houve um silêncio ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa. a ama não se movia... Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de oiro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!... E então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar aquele lento mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis ia ela escolher?
A ama estendia a mão, e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.
Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:
– Salvei o meu príncipe, e agora... vou dar de mamar ao meu filho.
E cravou o punhal no coração.

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(1) Falta o resto do jornal onde o conto foi inicialmente publicado.



Eça de Queirós, Contos